Segredos de um Escândalo – A luta para poder se enxergar como a vítima de uma relação abusiva.
Em um mundo onde o gênero true crime tem se disseminado cada vez mais, conquistando audiências de diversas idades e transformando-se em uma montanha-russa de produções, cujo principal objetivo é lucrar com a retratação ou dramatização de tragédias reais, é curioso refletir sobre a temática proposta por “Segredos de um Escândalo”. O filme opta por utilizar a fonte trágica de sua inspiração apenas como gancho inicial para uma discussão que vai muito além de destrinchar as motivações deturpadas da mente de seus personagens.
Baseando-se no caso de Mary Kay Letourneau, uma professora flagrada em relações com um aluno de 12 anos, que posteriormente engravidou e se casou com o jovem, mantendo um relacionamento que por muitos anos foi alvo dos holofotes americanos, Todd Haynes (diretor aclamado por seu trabalho em “Carol” de 2015) surge com uma abordagem que diverge completamente do espetáculo criado quando o caso veio à tona em 1996. Desta vez, Mary Kay é transformada em Gracie (Julianne Moore), uma mulher mais vulnerável e manipuladora, e Elizabeth (Natalie Portman), uma atriz que interpretará Gracie em um longa-metragem independente, é adicionada à história para contribuir para esse minimalista jogo de aparências onde Joe (Charles Melton), o jovem que teve sua inocência tomada aos 13 anos, se torna o prêmio a ser conquistado pelas personagens.
Para aqueles que buscam uma trama no estilo de “Dahmer” da Netflix, ou qualquer outra narrativa que se concentre principalmente na reconstituição dos crimes cometidos, e não propriamente nas consequências desses atos, “Segredos de um Escândalo” talvez possa soar como um balde de água fria. A trama não se preocupa em explorar a época em que o relacionamento de Gracie e Joe começou ou quando foram descobertos. Não se aprofunda nos aspectos legais do caso, nem adota uma abordagem documental para fazer uma crítica evidente sobre a capacidade da indústria do entretenimento americana de capitalizar tragédias alheias. Embora esses elementos possam ser brevemente retratados, eles não são o foco principal da história. Essa ousada decisão coloca o filme em confronto com as expectativas da indústria para uma produção com inspirações semelhantes, revelando-se assim uma de suas maiores forças.
Rico em simbolismos e com um desenvolvimento de personagens memorável, o roteiro de Alex Mechanik e Samy Burch centra toda a trama em Joe, a vítima, mas não o coloca como protagonista claro. O doentio desejo de Gracie que roubou sua juventude agora é explorado por Elizabeth, que tenta desesperadamente arrancar dele mais detalhes sobre seu trauma, silenciando-o e aproveitando suas angústias para alcançar seus objetivos. Através de seu caráter metalinguístico, o filme acrescenta à discussão sobre perversão, domínio e sensacionalismo, além de retratar com maestria as dificuldades que uma vítima enfrenta para se enxergar como tal. Mesmo sendo tratado constantemente como um objeto, Joe luta internamente para admitir que talvez tenha sido usado, e aqui é preciso ressaltar a excelente e sutil interpretação de Charles Melton, que mostra um notável amadurecimento profissional desde seus trabalhos anteriores em dramas adolescentes como “Riverdale”.
Julianne Moore e Natalie Portman são também duas forças impecáveis que elevam uma já muito bem construída obra a um patamar acima. Chega a ser cômico pensar que Natalie tem que interpretar uma atriz de talento e índole duvidosa, já que eu ouso dizer que ela entrega aqui, uma das performances mais memoráveis de sua carreira, ainda mais quando compartilha cenas e principalmente enquadramentos com a personagem de Moore. Se em algum momento essa história não te fisga por algum motivo, é impossível não ter seu coração colocado na palma da mão e os olhos completamente hipnotizados pela delicadeza com que ambas entregam suas linhas de diálogo, gerando angústia e atrito o suficiente para incendiar a trama com mais suspense.
Apesar de todos esses pontos de destaque citados anteriormente, em minha experiência aquele que mais me impressionou foi o cuidado com o qual os simbolismos do roteiro vão sendo explorados pela ótima direção de Haynes. O fato de Gracie ter sido possivelmente abusada em sua infância demonstra o quanto a sua própria inocência e compaixão foi perdida em algum momento. Suas vestimentas, maneira de se maquiar e jeito escandaloso, visto em todos os momentos em que ela é confrontada por uma quebra de expectativas, refletem o quanto internamente ela ainda possui essa criança presa, mas que, com o passar do tempo, acabou aprisionada pelo seu lado predador, que infringiu em Joe o mesmo trauma pelo qual ela havia passado. Sendo essa ideia relacionada com o fato de que Gracie adquiriu uma paixão pela caça.
No caso de Joe, por exemplo, o filme retrata seu trauma e culpa por meio de seu fascínio por borboletas. Cuidadosamente, ele pega os ovos deixados em folhas ao redor de sua residência e transporta-os para um ambiente seguro e aconchegante o suficiente para que os insetos possam se desenvolver. Quando as borboletas finalmente saem de seus casulos, ele as solta, resguardando-as dos perigos do mundo enquanto ainda são vulneráveis e dando a elas liberdade da maneira como ninguém foi capaz de fazer com ele. Agora, do lado de Elizabeth, o ponto que mais me chama a atenção é que seu desejo doentio de compreender a mente de Gracie pode ser relacionado tanto ao fascínio extrapolado e glamourização de crimes e casos como esse, quanto à temática do “método” em termos de atuação. Ela está tão fissurada pela ideia de interpretar alguém com a maior fidelidade possível que seu objetivo é incorporar a pessoa quase que literalmente. Esse ponto me remete também a entrevistas onde a própria Natalie Portman expressa sua desaprovação e desgosto em relação a esse tipo de atuação.
Em suma, “Segredos de um Escândalo” traça uma reflexão sobre como um trauma não tratado pode desencadear um ciclo vicioso, o quanto é difícil se enxergar como vítima quando se está preso em uma situação abusiva e como o sentimento da culpa é um dos mais difíceis de se lidar quando nos vemos sozinhos. Além disso, o filme critica a espetacularização de tragédias e o desejo humano de buscar o visceral, seja em termos físicos ou psicológicos, como retratado na obra. Embora algumas temáticas pudessem ter sido exploradas mais profundamente, a maneira cuidadosa com que a narrativa é retratada e as peças principais são movidas pelo olhar de Todd Haynes tornam esse um filme cativante do início ao fim.